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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A INSTRUÇÃO PÚBLICA NO DISTRITO DE CABO DELGADO, EM 1885, SEGUNDO O SEU GOVERNADOR, MAJOR PEDRO FRANCISCO DE ORNELAS PERRY DA CÂMARA

Carlos Lopes Bento[1]

Pela sua importância para a História de Moçambique e de Portugal, nos tempos que passam, tanta vez esquecida ou negada, pelas novas gerações de ambos os Países, venho lembrar o que o governador Perry da Câmara escreveu, em 1885, sobre o ensino na Vila do IBO:

Uma das necessidades do distrito mais impreterível e inadiável é a instrução, porque sem ela pouco se pode caminhar na senda do progresso.

Desenvolver os melhoramentos materiais, alargar a esfera das atribuições administrativas, dar ao município a autonomia que lhe é inerente, remodelar a organização judiciária, finalmente, acompanhar os progressivos anelos da civilização é realmente muito, se a par de todos estes benefícios nós conseguíssemos, por meio da instrução, educar os espíritos para bem compreenderem todos esses melhoramentos.

Deixar o povo na ignorância é criar um obstáculo permanente á realização de todas essas nobres aspirações, é conservar um desequilíbrio, cuja resultante é a desmoralização nos costumes públicos e particulares, sem que possa pedir-se aos delinquentes a responsabilidade das suas culpas, porque, previamente, se lhes não dera a noção exacta dos seus deveres.

Em 26 de Maio último, propus, em ofício n.° 41, a cedência de uma casa pertencente ao Estado para servir e ser apropriada ao edifício da escola da vila.

As razões que me obrigaram a lançar mão deste alvitre devem ser aqui enumeradas para que todos possam fazer um juízo seguro do precário estado a que tinha chegado a escola régia da sede do governo.

A casa da escola, além de acanhada, não tem nenhuma das condições exigidas para estabelecimentos desta ordem.

Sem ventilação, mal mobilada, pouco asseio, escassa luz, não admira que fosse também mal frequentada.

Na visita que ali fiz verifiquei a pouca concorrência de alunos e, em vista do espectáculo que se me deparava, expliquei imediatamente esse facto pelas condições insalubres do edifício.

Entendi, e não me pesa de o ter entendido, que sem uma casa própria era impossível aumentar a frequência dos alunos, e como era possível com uma despesa relativamente módica obter edifício acomodado ao fim, lembrei e indiquei a aplicação da casa, que tinha em tempo servido de delegação da fazenda, para estabelecimento das aulas.

Esta proposta foi aprovada, obrigando-se a fazenda a fornecer 350$000 réis para as obras necessárias e para compra de mobília adequada.

Fazemos votos para que o ilustre funcionário que nos substituiu compreendendo bem a importância do assunto, tenha concluído esse melhoramento que por proposta nossa foi iniciado.

Já que estamos tratando desta matéria, queremos deixar consignada a nossa opinião sobre este assunto.

Uma das causas ou talvez a única da decadência da instrução nas nossas colónias, é a exiguidade dos ordenados arbitrados aos professores.

Com 25$000 réis mensais é impossível a vida em qualquer das nossas possessões e não se compreende nem se pode esperar que um homem com uma certa ilustração se desloque do seu país e se sujeite aos sacrifícios e amarguras que impem o professorado para receber como recompensa dos seus trabalhos um tão minguado salário.

É preciso aumentar o vencimento dos professores do ultramar e é possível que com o estímulo de uma boa retribuição se ofereçam homens novos, robustos e instruídos para irem levar a luz da ciência àquelas paragens onde as trevas da ignorância são densas e opacas.

40$000 réis mensais não seria vencimento exagerado, e se houvesse uma escolha escrupulosa do pessoal docente enviado da metrópole para as nossas possessões temos a certeza de que se daria um grande passo para a prosperidade delas.

Estas considerações sugeriram-nos outras não menos importantes: a necessidade de enviar missionários para os pontos indicados pelos governadores dos distrito.

Este assunto devia merecer uma atenção especial a todos aqueles que estão encarregados de velar pelo engrandecimento dos nossos domínios coloniais.

O missionário é um dos mais poderosos elementos de civilização de que podemos dispor, se os homens designados por aquele qualificativo correspondessem cabalmente à amplitude das múltiplas funções que lhes incumbem.

A nosso ver a teologia é a ciência mais dispensável naqueles homens.

Entre os gentios as demonstrações à priori da existência de Deus são extemporâneas e inoportunas e achamos que melhor serviço prestariam os missionários, se em vez de noções de alta filosofia eles levassem ideias gerais sobre as ciências que se podem aplicar ás artes e aos ofícios, e que são de uma aplicação prática e proveitosa.

A redenção das almas, para nós, consiste na aquisição das noções exactas dos deveres, quer eles digam respeito ás relações entre o homem e o homem, ou entre o homem e Deus.

No momento em que nos sertões de África aparecessem missionários suficientemente instruídos e decididamente dedicados, que se propusessem a ensinar aos selvagens a significação verdadeira dos objectos que lhes impressionam os sentidos, e lhes inspirassem o amor pelo trabalho, obrigando-os a fazer uso profícuo das matérias primas que numa variedade prodigiosa a natureza por lá derramou a flux; a compreender as relações que ligam entre si os homens para poderem viver em sociedade; a perceber que o direito de propriedade é universalmente reconhecido, e que a fé dos contratos é sagrada; a respeitar a lei e o princípio da autoridade, e as variadíssimas noções gerais que ilustram o espírito dos homens civilizados, nós teríamos facilitado a administração das nossas províncias ultramarinas, teríamos garantida a fidelidade da vassalagem daqueles potentados e teríamos acendido o facho da civilização naqueles vastíssimos domínios, onde impera a ignorância, porque nós não sabemos ou descuramos regenerá-los pelos meios únicos que conhecemos as escolas e as missões.

A extinção dos conventos nas nossas possessões ultramarinas foi, a nosso ver, um gravíssimo erro de administração colonial e bem avisadamente teria procedido o governo, se em vez de destruir completamente àquelas colectividades as tivesse obrigado a aceitar a fiscalização do poder civil que podia aproveitá-las em beneficio comum.

Os conventos eram uma escola prática e teórica de todos os progressos das ciências e das artes, e a disciplina monástica um meio poderoso para o desenvolvimento intelectual dos que procuravam na comunidade a instrução e o bem-estar.

Não é para aqui a discussão da tese de serem as comunidades religiosas um perigo social; mas tem aqui cabimento a sinceridade da nossa opinião que reconhece que com outra organização, os mosteiros seriam, nas nossas possessões ultramarinas, um auxiliar poderoso para o derramamento da instrução e para a boa administração dos distritos.

O frade, pela índole da posição em que se via colocado, já pelo voto, já pela regra da disciplina, tinha condições especiais para exercer o magistério nos vastos sertões africanos, e levar a luz da civilização ao seio de todas as povoações selvagens que estão disseminadas pelo interior dos extensíssimos domínios.

As ruínas, que, ainda hoje, se admiram e os pretos veneram, dos grandiosos mosteiros que eles lá edificaram atestam de sobejo a importância e o excedente que eles souberam adquirir naquelas paragens.

O que levamos dito não, significa que seja desejo nosso a criação de estabelecimentos daquela natureza, o que queremos é consignar desassombradamente a nossa opinião de que em vez de se destruírem, se deveria ter remodelado o modo de ser daquelas colectividades para termos nelas as escolas profissionais em que se educassem os mestres, que por determinação do governo fossem distribuidor pelas povoações do interior, onde ensinassem o que tinham aprendido no internato da clausura.

Vê-se, pois, qual é o nosso pensamento a esse respeito.

O colégio das missões ultramarinas não satisfaz ao fim para que foi criado.

Além dos poucos missionários que produz não lhes dá a educação apropriada e especial de que careciam.

Os pretos não necessitam, somente, da moral evangélica, precisam, ao mesmo tempo, da educação profissional e da instrução, embora fosse superficial, necessária para a harmonia das relações sociais.

Os missionários franceses distinguem-se, por isso, pela variedade da instrução que possuem e pela aptidão que desenvolvem entregando-se ao ensino complexo das ciências, das artes e das profissões.

[1] - Antropólogo e administrador dos concelhos dos Macondes, Ibo e Pemba entre 1967 e 1974. Director Tesoureiro da S.G. Lisboa.